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A cor do Leite – Nell Leyshon

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essa é a minha resenha e eu estou escrevendo ela com as minhas próprias mãos. é o ano do senhor de dois mil e catorze.

Parece estranho uma resenha começar assim, mas é dessa forma que Mary, a narradora protagonista, escreve. Fiquei tão afeiçoada e conectada a esta personagem que não poderia começar o texto sem fazer uma deferência. Ainda estou tremendo com o desfecho e com todas as emoções crescentes e represadas, que desaguaram numa surpresa impactante.

Mary é uma mocinha de 15 anos, acaba de ser alfabetizada, nunca frequentou escola e não tem acesso a lazer ou informação. Trabalha arduamente, do nascer ao por do sol, nas tarefas da fazenda, cuidando dos bichos e da terra, ao lado do severo pai e das três irmãs mais velhas. Seus pais são muito rudes e a única relação de afeto é com o avô inválido, negligenciado pelos membros da família, seu parceiro e confidente. Não há diálogo, não há carinho. O ano é 1831 e a aridez da vida ensinou Mary a ser forte.

“o senhor não fica triste?, eu perguntei.

não por muito tempo.

nem eu, eu falei. tem umas vezes que eu tenho que ficar me lembrando que estou triste senão eu começo a ficar feliz de novo."

A jovem Mary é pura, ingênua, mas sua língua é afiada, diz o que pensa. Tem uma perna deficiente e os cabelos são da cor do leite. Vai trabalhar na casa do senhor Graham, presbítero da cidade, cuja esposa está doente. Em contato com uma vida completamente diferente da dureza da fazenda, é bem recebida, aprende novas tarefas, inquieta-se com os momentos ociosos e tem a oportunidade de aprender a ler e escrever. Apesar da grande mudança, permanecem a privação de liberdade e a subordinação à vontade masculina. Estamos na primeira metade do século XIX e a voz feminina não é considerada. Só lhe resta a resignação, mas não sem rebeldia.

“acabou?, ele perguntou.

não. sim.

ele sorriu. você fala o que vem na sua cabeça.

eu só tenho uma cabeça e tenho que falar o que vem nela, eu falei.”

A narrativa em primeira pessoa pode parecer cansativa e até irritante a princípio, porque Mary usa letra minúscula e é alheia às regras gramaticais. Mas é essa estrutura de texto que traduz toda a intimidade do relato. Mary repassa sua vida com a urgência de explicar algo, de justificar alguma coisa que fez, mas que só saberemos nas últimas páginas. O equilíbrio entre a sinceridade e a ingenuidade culmina num discurso cru, verborrágico, visceral. Toda a força expressiva de Mary torna o texto muito delicado e essencialmente confidencial. É isso que comove: você ama Mary exatamente pelo que ela é.

Cada capítulo é uma estação do ano, iniciando na primavera, quando “tudo são flores” e Mary ainda vive na fazenda ao lado da família. O frio do inverno fecha a narrativa com o inesperado, o ponto alto da trama, que até então caminhava deliciosamente morna. Essa marcação do tempo harmoniza-se com a pressa que Mary tem de contar detalhadamente o que sucedeu e que a levou a escrever sua história. E que história!

Ao longo das páginas o dia a dia parece monótono, mas ela sempre abre o capítulo avisando que algo vai acontecer, alimentando a tensão da iminência do clímax:

“esse é o meu livro e eu estou escrevendo ele com as minhas próprias mãos.

agora é o ano do senhor de mil oitocentos e trinta e um.

eu não gosto de contar tudo isso pra você. tem coisas que eu não quero dizer. mas eu falei pra mim mesma que eu ia contar pra você tudo que aconteceu. eu disse que ia contar tudo e é por isso que eu tenho que ir até o fim.”

Você vai se envolver, vai querer ajudar, acolher, sacudir Mary... Ela não é a mocinha doce e sonhadora dos romances de época. Mary é dura, casca-grossa, atrevida, mas todos esses predicados são frutos da desesperança, de sua vida difícil. Ela é contraditoriamente resignada e indomável. E vai surpreender. Este é um romance para ficar na memória, deixar um gosto amargo, inquietar.

“Tragicamente, Mary está certa: homens e feras têm muito em comum.” (Daily Mail)

A bela capa do livro não mostra o rosto de Mary, assim como o texto não revela logo sua força. Só no inverno de Mary, no ápice da leitura, conheceremos a verdadeira face da dor e da desilusão, sentiremos a fúria do instinto de sobrevivência. Então a enxergaremos, a imagem de Mary estará completa.

A Cor do Leiteé uma história profundamente sensível. A autora Nell Leyshon criou uma personagem tão rica e intensa que facilmente figurará na galeria das personagens inesquecíveis.

Classificação no Skoob: 5 estrelas

http://www.skoob.com.br/estante/livro/44103787

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Essa resenha foi escrita por Manuh Hitz, colaboradora do blog.

Facebook: https://www.facebook.com/manu.hitz.7?fref=ufi


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