Um livro premiado com o Pulitzer, aplausos da crítica e recomendação de Stephen King já seria mais do que curioso para conduzir o leitor à obra. Mas o que mais me chamou para a leitura de O Pintassilgo (Companhia das Letras, 721 páginas) foi o saboroso convite da sinopse: “uma hipnotizante história de perda, obsessão e sobrevivência”.
Ainda estou assimilando o mundo de informações e divagações que a autora trouxe com a história de Theo Decker. Demorei mais de um mês para finalizar a leitura e não me senti desafiada a devorar rapidamente o livro, que foi escrito pacientemente (e à mão) durante dez anos por Donna Tartt. Seus dois livros anteriores também foram publicados (com bastante sucesso) com um intervalo de dez anos. Segui a autora. Acho que a narrativa pede uma leitura cuidadosa, sem pressa, mastigada. O drama da vida de Theo o torna ainda mais cativante e talvez nos aproximemos dele com um olhar um tanto piedoso.
O livro tem início eletrizante, Theo (adulto) está apavorado e escondido em um hotel em Amsterdã, tentando decifrar nos jornais holandeses alguma menção à enrascada em que se metera. A partir desse ponto de tensão, começa a narrar sua vida desde a mudança mais cruel e profunda, que desencadeou todo o resto: a perda precoce da mãe, quando tinha 13 anos, em um atentado ao Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque.
“Esta é a primeira pintura que eu realmente amei”, minha mãe estava dizendo. “Você não vai acreditar, mas estava num livro que eu costumava pegar emprestado da biblioteca quando era criança. Sentava no chão do meu quarto e ficava olhando para ela por horas, completamente fascinada. (...) Comecei me apaixonando pelo pássaro, do jeito que se ama um animal de estimação ou algo do tipo, e terminei me apaixonando pela forma como foi pintado.”
No momento seguinte, o Theo menino sobrevive à explosão no museu. Há muitas vítimas sob os escombros e ele consegue sair levando a tela ‘O Pintassilgo’, obra de 1654 do pintor holandês Carel Fabritius. Órfão de mãe e rejeitado pelo pai irresponsável, Theo vai viver na fria e rica casa de um amigo. Um dia o pai aparece e o leva para Las Vegas, outra mudança decisiva na vida do garoto. Ele se agarra à pintura como um elo que o liga à mãe, que era fã da obra. O quando mostra um pássaro acorrentado, tal como Theo se prende ao passado, impedido ao voo pela culpa: não fosse a reunião na escola (por um ato de indisciplina), não estariam no museu e ela não teria morrido.
"Como alguém podia sentir tanta saudade de uma pessoa como eu sentia da minha mãe? Sentia tanto a falta dela que queria morrer: um anseio forte e físico, como uma falta de ar debaixo d'água. (...) há apenas três dias ela estava viva, há quatro dias, há uma semana. Na minha mente, ficava repassando todas as refeições que tínhamos feito nos dias que antecederam sua morte (...)."
Para melhor compreensão do leitor, separo a narrativa em dois tempos marcantes: a atribulada adolescência de Theo e sua vida adulta, no momento atual em que nos conta a história, aos 27 anos. O Theo homem, na segunda parte do livro, trabalha como antiquário em NY e acaba por se envolver numa confusão sem tamanho por conta da tela e de algumas falsificações, fato que poderá prejudicar alguém muito querido: o velho e simpático Hobie.
Os personagens secundários são muito importantes e contribuem de forma definitiva tanto para o caos como para a ‘salvação’ de Theo: a breve passagem da mãe carinhosa e amante das artes; o pai alcoólatra e ausente; Hobie, o verdadeiro amigo, referência masculina (e paternal) importantíssima, que ensina a Theo a arte da restauração; Boris, o amigo que é o anti-herói da trama: malicioso e vítima da desestruturação familiar como Theo, com ele divide as dificuldades da adolescência em meio a pequenos furtos, vodka e drogas. E Pippa, a eterna paixão, também sobrevivente da explosão no museu, que se torna uma grande amiga.
"Por anos Pippa tinha sido a primeira coisa que eu lembrava ao acordar, a última coisa que atravessava a minha mente quando ia dormir, e durante o dia ela me vinha de forma intrusiva, obsessiva, sempre com um choque doloroso (...)"
Theo é o herói trágico, que por definição sabe que a derrocada é conseqüência de um erro seu, não tem outra saída a não ser confrontar seus medos, mas também sofre impiedosamente. A culpa que Theo carrega é a fonte maior do sofrimento. Nas palavras de Aristóteles: “uma pessoa nem perfeita em virtude e justiça, nem que caiu em desgraça devido ao vício e a depravação, mas que sucumbiu por força de algum erro de cálculo”. Ele convive, como nós, o tempo todo, com as escolhas e suas irremediáveis consequências.
"Continuava sendo um choque toda vez que eu lembrava que ela se fora, um novo tapa na cara. Cada novo evento - tudo o que fizesse pelo resto da minha vida - ia apenas nos separar mais e mais: dias dos quais ela não fizera parte, uma distância cada vez maior entre nós. A cada novo dia, pelo resto da minha vida, minha mãe ficaria mais longe."
Seguindo a vida empurrado pelas tormentas que encontra pelo caminho, Theo é um cara passivo, só reagindo aos estímulos, quase nunca sujeito das mudanças. Eu disse quase nunca porque Theo cresce, mas permanece agarrado à imaturidade. Apesar do enorme carinho que senti pelo personagem (acho que meu lado maternal foi decisivo aqui), não o vejo amadurecido, parece justificar suas desarmonias com o comportamento autodestrutivo. A morte da mãe e a saudade pungente é uma lembrança recorrente ao longo da obra.
"(...) a primavera em Nova York sempre foi uma época envenenada para mim, um eco sazonal da morte da minha mãe soprando com os narcisos, árvores floridas e salpicos de sangue (...)"
Há momentos onde a coisa fica morna e quando menos esperamos um clímax salva a situação. Mas o fato é que alguns pedaços da vida de Theo, especialmente em Las Vegas na companhia de Boris, em que as repetições do ciclo ‘garotos chapados - garotos de ressaca – garotos comendo sobras de jantar’ desanimam o leitor. Esse entorpecimento é uma fuga para o desamparo de ambos, a saída para tanta desesperança e solidão. É um longo pedaço da trama que se distancia do impacto inicial e da agilidade que virá a seguir.
As últimas páginas antes do desfecho (sem querer soltar spoilers) fecham o momento que abre o livro, aí sim, explicando por que Theo está em Amsterdam, alucinado e febril. A sequência no estacionamento é digna de um policial de primeira, tensão à flor da pele, perdi o ar! Ao final, a bela reflexão de Theo sobre sua vida até ali, num tom confessional onde apreendemos a fragilidade – já conhecida - do personagem, por sua própria voz. Achei uma boa sacada da autora, deu a Theo uma espécie de autoperdão e ao leitor a possibilidade de ser indulgente com a vida-louca-vida do rapaz.
Numa narrativa tão extensa, que mostra o crescimento do protagonista e seus infortúnios, é claro que fiquei me perguntando como seria a vida de Theo se não tivesse ficado órfão. Era excelente aluno, tinha o carinho e a presença estimulante da mãe quando se viu perdido, extremamente só. Depois, ainda que abrigado na casa dos Barbour, permaneceu desamparado, salvo somente pelo maravilhoso encontro com Hobie. Perdeu-se mais uma vez na amizade com Boris, outro abandonado pelo pai. Conheceu o declínio dia após dia, as drogas, a fuga dos problemas e as encrencas pela falta de uma mão para guiá-lo, de um olhar responsável. Há momentos assim, deprimentes, mas há também reviravoltas e picos de tensão alimentados pela tela famosa escondida, procurada pela polícia. O medo tira o sono do nosso protagonista. E há Pippa, que inquieta Theo e o faz suspirar e sonhar:
"Mesa minúscula. Meu joelho contra o dela. Será que Pippa estava ciente disso? (...) Tudo resplandecia, tudo era doce. (...) E ali estava ela! Ela! (...) E, uau, havia anos ela não me via tão bem, tinha sentido saudade de mim, muita saudade, que noite incrível. (...) Eu me sentia uma pessoa diferente na companhia dela, uma pessoa melhor, (...) e era um prazer supremo estar com ela, eu a amei durante cada minuto de cada dia, coração, mente, alma e tudo o mais, e estava ficando tarde e eu queria que o lugar não fechasse nunca, nunca."
A escrita de Tartt é muito elegante, o texto é polido, o tempo todo ela nos lança um desafio: continuarmos firmes, ainda que a narrativa se estenda pela quantidade de descrições e detalhes, para logo em seguida sacudir o final de um capítulo com um gancho instigante para o próximo.
O cerne do livro é o amadurecimento de Theo e o encadeamento de erros e acertos de um personagem em luto permanente, metido numa enrascada sem tamanho por conta da posse ilegal d’O Pintassilgo. A jornada do protagonista justifica o calhamaço de mais de 700 páginas, com os altos e baixos da vida tal qual a realidade. Para isso, a autora usa da imprevisibilidade do enredo, piruetas emocionantes entremeando os momentos de torpor do rapaz. Não temos como definir o gênero do livro, que tem muito de drama psicológico, mas também é extremamente rico em informações sobre o mercado e o tráfico de artes, tem ingredientes de um bom suspense e cenas policiais de tirar o fôlego.
Acredito que seja um livro para leitores que apreciem um romance de formação de desenrolar lento, com exploração da banalidade cotidiana, mas que sabe sacudir o ritmo de repente, imprimindo uma velocidade angustiante característica dos thrillers, em cenas alucinantes. Sobretudo para quem gosta de desfrutar da companhia de um personagem psicologicamente abalado, mas que quer se redimir e cicatrizar as feridas.
Curiosidade: um acidente também marcou a trajetória do pintor d’O Pintassilgo (sim, a obra existe): Carel Fabritius morreu aos 32 anos após a explosão de um armazém de pólvora, que queimou várias de suas obras, restando poucas – dentre elas, o quadro do livro. Ele pode ser visto no museu Mauritshuis, em Haia (Holanda), tem sido bem procurado pelos fãs do livro e ganhou lugar de destaque graças ao sucesso de Donna Tartt.
Na lista de best-sellers do New York Times, o livro vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares, foi publicado em várias línguas e vai estrear na telona – mal posso esperar!
Classificação: 5 estrelas
Link do livro no Skoob:http://www.skoob.com.br/livro/394765ED446833
Link do Museu com a tela O Pintassilgo:https://www.mauritshuis.nl/nl-nl/verdiep/de-collectie/zoeken-in-de-collectie//?query=fabritius&category=collectie
Resenha escrita por Manuh Hitz, colabora do blog.
Meu link do Skoob:http://www.skoob.com.br/usuario/596865