Autor: Luiz Ruffato
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2016
Sinopse: Luiz Ruffato ocupa um lugar único na literatura brasileira. Seu Eles eram muitos cavalos marcou época e hoje, mais de uma década depois de sua publicação, tornou-se um romance cultuado, que registrou numa prosa moderna e incomum as muitas vozes da cidade de São Paulo. O projeto Inferno provisório, saga composta de cinco volumes, tem poucos paralelos nas nossas letras: ambicioso, vasto e singular, acompanha por décadas a trajetória de vários personagens de classe média baixa. De mim já nem se lembra trata de assuntos caros ao autor: a família, o tempo, a memória. Mais uma vez, Ruffato irá transformar um pequeno episódio familiar em oportunidade para falar de seu país e de sua sociedade. Ao abrir uma pequena caixa encontrada no quarto da mãe falecida, a caixa na qual ela “abrigara seu coração esfrangalhado”, o narrador se depara com um maço de cartas cuidadosamente atadas por um cordel. Escritas pelo irmão, vitimado por um acidente automobilístico, e dirigidas à mãe, essas cinquenta cartas reconstituem um passado: ao mesmo tempo que ilustram as mudanças políticas, econômicas e culturais durante a ditadura militar brasileira, convidam o leitor a espreitar a memória de uma família com “olhos derramando saudades”.Neste livro, o autor recupera a antiga tradição do romance epistolar, transfigurando-a - em vez de uma troca de correspondência ordenada cronologicamente, em De mim já nem se lembra há apenas uma voz, no espaço e tempo imprecisos da ausência.
Resenha:
Há muitas maneiras de falar de saudade. Na literatura podemos encontrar um sem-número de histórias carregadas de memórias caras, em estilos diversos. Dentre tantas preciosidades, colhi um relançamento magnífico: De mim já nem se lembra (Companhia das Letras, 144 páginas), de Luiz Ruffato, expressivo nome da literatura brasileira.
A escrita traz o conforto das lembranças familiares e divide o livro em três partes. Na primeira delas, o narrador (que tem o mesmo nome do autor, Luiz) está de volta à casa dos pais, em Cataguases – MG, muitos anos depois de tudo (o tudoé o recheio do livro). Com um olhar atento, vai apresentando ao leitor a atual situação familiar, recorrendo às lembranças como quem pesa experiências e busca o saldo: os caminhos que a vida vai tomando, os que vamos escolhendo e os infortúnios do percurso.
Após a morte da mãe, coube-lhe encontrar a caixa de madeira sob a cama de casal, depósito das mais duras lembranças: “Um maço de cartas, cuidadosamente enfeixadas com barbante”. As cartas acabaram largadas por um tempo. No esquecimento, o ato falho reconhecido:
“Receava, embrenhando-me naquele deserto de episódios, afogar-me em traiçoeiras lembranças movediças? Talvez. Mas, mais comezinho, julgo que empurrava-me o orgulho provocado pelo ciúme.”
É normal que haja entre irmãos uma disputa por amor e atenção dos pais. Mas a mãe se fechou para a vida depois do episódio mais cruel que pôde experimentar. Teria negligenciado os outros filhos? Decepções e mágoas foram depositadas nas entrelinhas da convivência. Na caixa que a mãe guardava como altar de sua dor, o desvelo cultuado por longos anos reacende as dores, mas também desperta uma luzinha de perdão: “ali minha mãe abrigara seu coração esfrangalhado.”
A segunda parte se dedica integralmente às cartas que o irmão enviara à mãe, quando foi morar em São Paulo em busca de oportunidades, na década de setenta. É quando entra em cena uma segunda voz narrativa: a do irmão, que soa solitária. A correspondência conta da luta na cidade grande, a adaptação ao clima, aos costumes e a resistência ameaçada pela saudade da família, a preocupação com o pai doente. Através dela também revisitamos momentos de mudanças do país, em plena ditadura militar. A emoção fica por conta da exposição integral do conteúdo das cartas, que revelam muitos sentimentos do irmão ausente. É aqui que a sensibilidade de Ruffato mexe com o leitor: permite-nos celebrar as conquistas de José Célio, mas não sem uma dorzinha no coração por já sabermos o que ele ainda não sabe.
“É nessas horas que eu entendo a revolta do Fabinho, que sempre fala que não entende por que para ganhar a vida a gente tem que mudar para longe das pessoas que ama. Eu penso que nem ele, que o mundo é muito injusto.”
Não sei se a intenção do autor foi dar a dimensão dessa profunda solidão que é mudar sozinho para uma cidade grande, de costumes diferentes e ritmo frenético, ao escolher como estrutura de texto a correspondência unilateral. É que em mim prevaleceu essa percepção: do silêncio dos dias que se seguem na peleja até que chegue uma resposta pelas mãos do carteiro. Da precariedade de enviar “um dinheirinho” dentro do envelope, do risco de extravio da comunicação (que aconteceu algumas vezes). Do feriado que demora a chegar e traz a possibilidade do reencontro, de matar a saudade. E do solitário cultivo da esperança, da quase certeza de que os dias hão de ser melhores, da fé depositada no amanhã, que é sempre uma interrogação, uma aposta, um depósito de crença no silêncio divino. Só chegando lá na frente é que se pode olhar para trás e, enfim, avaliar o que valeu a pena, o que não pode mais ser mudado. E questionar uma porção de “e se...” que ficou pelo caminho.
Estar longe da família não é fácil e Célio, apesar de adaptado à nova vida, ainda cultiva seu lado simples, mas já percebe que as mudanças são assimiladas pela urgência das necessidades. E, se ainda não se sente parte desse mundo novo, também não é mais no interior que se sente acolhido:
“A sensação que fica é de que nunca mais vou voltar. Isso é muito triste, porque aqui não é o meu lugar. Mas sinto que aí já não é o meu lugar. Ou seja, não sou de lugar nenhum. E isso dói dentro da gente.”
O que acontece depois, após Luiz descobrir por meio das cartas o que o irmão fazia, pensava e comunicava à mãe, não saberemos. Na última parte há uma carta recente em que o autor mais uma vez convida para uma dança, onde ficção e realidade podem conviver muito bem. Ou, se preferir, ele – escritor – se revela. Fica nas mãos de quem lê a possibilidade de desvendar ou de criar esse final. Ruffato, eu te amo também por isso!
“Peço a bênção e reze para que dê tudo certo na minha viagem.”
Numa entrevista, o autor revelou que este é o livro em que ele mais se expõe, onde tentou “uma confluência entre real e imaginário”, mas deixa ao leitor o benefício da dúvida e da decisão sobre a veracidade dos fatos. Bingo! Outra vez reverencio a escolha do autor, ficamos sem saber o quanto de Luiz-narrador é do Luiz-escritor. Mas quase posso apostar que já sei... eu disse q-u-a-s-e.