Autora: Martha Batalha
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: Rio de Janeiro, anos 1940. Guida Gusmão desaparece da casa dos pais sem deixar notícias, enquanto sua irmã Eurídice se torna uma dona de casa exemplar.
Mas nenhuma das duas parece feliz em suas escolhas.
A trajetória das irmãs Gusmão em muito se assemelha com a de inúmeras mulheres nascidas no Rio de Janeiro no começo do século XX e criadas apenas para serem boas esposas. São as nossas mães, avós e bisavós, invisíveis em maior ou menor grau, que não puderam protagonizar a própria vida, mas que agora são as personagens principais do primeiro romance de Martha Batalha.
Enquanto acompanhamos as desventuras de Guida e Eurídice, somos apresentados a uma gama de figuras fascinantes: Zélia, a vizinha fofoqueira, e seu pai
Álvaro, às voltas com o mau-olhado de um poderoso feiticeiro; Filomena, ex-prostituta que cuida de crianças; Luiz, um dos primeiros milionários da República; e o solteirão Antônio, dono da papelaria da esquina e apaixonado por Eurídice.
Essas múltiplas narrativas envolvem o leitor desde a primeira página, com ritmo e estrutura sólidos. Capaz de falar de temas como violência, marginalização e injustiça com humor, perspicácia e ironia, Marta Batalha é acima de tudo uma excelente contadora de histórias. Uma promessa da nova literatura brasileira que tem como principal compromisso o prazer da leitura.
“O Brasil precisa de uma literatura em que a gente se reconheça” (Martha Batalha)
Esta é a história de muitas mulheres que você conhece. É também a história de mulheres que se inquietaram e não aceitaram a formatação social exigida para a época: a de que as mulheres foram feitas para o casamento, os filhos e as tarefas domésticas. Para o recato e o silêncio, para abafar os desejos e aceitar as imposições. O livro A vida invisível de Eurídice Gusmãoé uma volta ao tempo das nossas avós.A trama se passa em meados do século XX, no bairro de classe média da Tijuca, no Rio de Janeiro. As fofocas da vizinhança não dão trégua. As duas irmãs Gusmão, Eurídice e Guida, representam as únicas opções dadas às mulheres então: submissão ou rebeldia. Mulheres que nasceram no lugar errado, na época errada. A própria autora faz essa referência ao contar: “É um livro sobre esse machismo cotidiano que passa despercebido.”
Eurídice é uma garota inteligente, aplicada, cheia de sonhos. "Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar."
Guida, a mais velha, rebelde e tão dona de si, vai embora com o namorado, deixando os pais desolados. Mal sabe a moça forte quantas decepções encontraria pela vida:"Aquela era Guida Gusmão, a mulher que nunca olhou para baixo. Guida Gusmão, que não sabia o que era fracasso, e que alimentava as suas forças com as dificuldades de seu caminho."
Com o sumiço da irmã, todo o peso da expectativa dos pais cai sobre os ombros de Eurídice, que já era dada a obediências e passividades. Então, casa-se com Antenor, um homem trabalhador e dedicado. Adaptada à rotina familiar, com dois filhos e uma casa para dar conta, Eurídice procura fazer algo que lhe dê prazer. E encontra nas receitas culinárias uma nova distração, além da possibilidade de dar vazão ao seu talento e ser reconhecida:
“- Olha aqui, Antenor... anotei aqui todas as minhas receitas. Você acha que posso publicar?
- Deixe de besteiras, mulher. Quem compraria um livro feito por uma dona de casa? ”
Não era fácil ser mulher na década de 50... Guida enfrenta muitas dificuldades, perde o contato com a família, mas não sua força. Enquanto Eurídice segue tentando ser útil para si mesma, não só para os que dependem dela. Após a infelicidade com as panelas, se encanta com a costura, monta um atelier às escondidas. Vizinhança ouriçada e outra negativa do marido. Vive dias de solidão e angústia, de vazio existencial. Causa na empregada Das Dores uma preocupação própria da solidariedade feminina. Fica a olhar as estantes... cheias de livros... Bingo!
"Foi numa noite de outubro, quando os escritos de Eurídice já estavam bastante avançados, que ela soltou entre uma e outra garfada a informação que satisfez a curiosidade da família. ‘Estou escrevendo um livro. É sobre a história da invisibilidade’."
Ela vai na contramão do desencorajamento do marido. Dá voz a tantas mulheres que não foram respeitadas em suas aspirações, a quem não foi permitido cruzar as próprias fronteiras, ir além dos muros domésticos. Quantas se atreveram e foram vítimas de seus companheiros, como ainda hoje acontece? Antenor não é violento com a esposa, permite que ela se divirta com o que ele considera passatempo, mas é daqueles machistas institucionais, que delimitam o espaço da mulher ao alcance de seus domínios:
"Eu preciso de uma mulher dedicada ao lar. É sua responsabilidade me dar paz de espírito pra eu sair e trazer o salário pra casa. Uma boa esposa não arranja projetos paralelos. Uma boa esposa só tem olhos para o marido e os filhos. Eu tenho que ter tranquilidade pra trabalhar, você tem que cuidar das crianças."
As demais personagens do livro orbitam em torno das irmãs Gusmão. São pessoas que podemos nomear entre familiares, amigos e conhecidos. A vizinha fofoqueira, o rapaz bem-nascido e sem caráter, o marido machista que não enxerga a própria esposa, o “moço velho” dependente da mãe neurótica, a doméstica explorada no serviço. Tem de tudo.
Duas coisinhas me incomodaram durante a leitura: queria estar nos pensamentos de Eurídice. O recurso da narração em terceira pessoa pode ter dado um afastamento demasiado dos conflitos da personagem. Outra inquietação se deu à falta de resolução de pendências, que estão tão vivas no texto, mas ficam meio que em banho-maria. Ao mesmo tempo, outras coisas adoçam a leitura, como expressões usadas por nossas avós. Entre prós e contras, há muito mais vantagens e conteúdo na leitura, recomendada, com certeza.
O livro traz muitas reflexões (não fosse assim eu não o teria escolhido). Há um momento que demora na vida de Eurídice, quando ela perde o ânimo pela falta de apoio da família, em que passa as tardes olhando para a estante de livros. Há várias menções a este embotamento. Quantas mulheres viveram/vivem todos os seus anos assim? Sem tomar as rédeas da situação, sem coragem de mudar, sem ousar, sem permitir o enfrentamento, a novidade, o rompimento? Falo de mulheres porque este é o foco da narrativa, mas quantas pessoas, em geral, experimentam isso alguma vez? Em outro trecho a autora nos apresenta a “Parte de Eurídice que não queria que Eurídice fosse Eurídice”.Quase beijo a Martha Batalha aqui. Eis um ponto alto em que precisamos parar. Os boicotes, a autossabotagem. Gosto de pensar nisso, algumas pessoas sentem um desconforto, mas adoro cutucar minhas próprias feridas. Martha Batalha mostra como “mulheres que poderiam ter sido” acabam “não sendo”.
É incrível que o livro tenha sido rejeitado pelas editoras brasileiras, sob a alegação de crise. Mas foi amplamente aceito e comprado por editoras estrangeiras. Até filme vai virar ano que vem. E por fim a Companhia das Letras resolveu publicá-lo, em edição caprichada. O livro chega ao mercado com uma força adicional: é um momento de discussão do empoderamento feminino, as redes sociais multiplicando ideias feministas e, aos poucos, a sociedade assimilando os conceitos e a necessidade de debater questões de gênero. Martha Batalha, ao contrário de Eurídice, não é mais invisível.
Recomendadíssimo, e mais ainda, aconselho a discussão do livro em clubes de leitura.